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Foto do escritorIvan Motosserra Pamponet

A música de Jorge Mautner


Crédito: material promocional do programa Expedição Sul - TV Brasil (EBC): http://tvbrasil.ebc.com.br/sites/_tvbrasil/files/imagens-imce/pgm_06_04_0_medio.jpg



Conheci a abra de Jorge Mautner na transição entra adolescência para jovem adulto através do seu álbum Eu Não Peço Desculpa de 2002 em conjunto com Caetano Veloso.

Na época, entre meus 14 e 19 anos, eu gravava um podcast musical chamado RockTrinta, então me sentia na obrigação de obter o máximo de conhecimento relacionado a música e isso incluía até os gêneros que não gosto muito. E mesmo não sendo muito fã de MPB - e compartilhando da crítica terminológica e social de Odair José - iniciei a pesquisa e análise da obra desse não tão conhecido multiartista. Me senti estranhamente atraído pelo fato dele ser judeu de família refugiada, pela forma poética que se aborda temas comuns e complexos, e o caráter típico da literatura, mesmo na música. Logo vi que, por mais que ele fosse notado pela música, era muito mais dramaturgo poeta que canta e toca que simplesmente música.





Jorge Mautner, nome artístico de Henrique George Mautner, nasceu no Rio de Janeiro em 17 de janeiro em 1941, pouco após sua família desembarcar no Brasil. Seu pai, Paul, era um judeu austríaco de Viena que fazia parte da Resistência Judaica e sua mãe, Anna, era católica de origem do que seria a atual Croácia e conseguiram fugir de navio para o Brasil, mas tiveram que deixar sua irmã mais velha, o que acarretou traumas em sua mãe. Seu pai conseguiu reunir uma grande quantia em dólares, mas foi totalmente subtraído por outro refugiado judeu em condição similar. Assim que chegaram, conseguiram ganhar algum dinheiro no cassino. Em pouco tempo sua família consegue se estabelecer e se estabilizar economicamente permitindo o pequeno Mautner uma infância que gozava de certos privilégios como ter uma babá. Sua babá, Lúcia, era Filha de Santo e proporcionou seu contato com a cultura mais popular brasileira, como o samba de roda, e com o candomblé. Mautner cresceu em meio as memórias de seus pais que perderam quase toda sua família, parte de pai e mãe, pelos criminosos nazistas, mas também com o que descreve como um típico humor satírico judaico e acesso a música, poesia, literatura e filosofia que ajudaram a forjar esse indivíduo singular.





Em 1948, devido aos problemas de seu pai com jogo, sua mãe se divorcia e casa com o violinista alemão Henri Müller da Orquestra Sinfônica de São Paulo. Mautner se muda com sua mãe para viver ao lado de seu padrasto em São Paulo junto aos pais de Henri, um pintor boêmio alemão e uma francesa ranzinza. Mautner tem um estranhamento dialético em sua relação familiar em que tinha uma forte identificação com sua cultura judaica, mas era muito bem tratado por seu padrasto, que mostrava seu posicionamento simpatizante ao nazismo ocasionalmente. A mãe do seu padrasto não aprovava o casamento desse com sua mãe por ser mais velha, divorciada e ter filhos, então o tratava de forma muito rígida. Porém, o pai de seu padrasto era um idoso muito doce e amigável que zombava da esposa chamando-a de “bruxa velha” pelas costas e o levava para pintar e comer chocolate em seu quarto. Mas o estranhamento vinha ao se deparar com uma grande bandeira nazista pendurada no quarto desse homem que desempenhava o papel de avô. Em alguns momentos, sua mãe era ofendida pelo marido por ter sido casada com um “horroroso judeu”, mas o mesmo marido tinha uma relação de devoção para com o pequeno enteado judeu.





Ainda no colégio, Jorge Mautner não era um músico, mas um fã de música que sempre estava ouvindo e tocando sem muitas pretensões. Seus colegas falam de como ele conseguia incorporar o samba carioca, um pouco destoante para os paulistas da época, com outros elementos e fazer, de forma brincante, músicas palatáveis para seus amigos. Sua verdadeira área seria a literatura, mas não de forma que exclua a música de seu âmago. Quando comecei a pesquisar sobre sua vida e obra, fiquei intrigado pelo fato dele ser visto quase exclusivamente como músico com uma importância tremenda atribuída ao mesmo tempo que se fala muito pouco dele, em geral. Ele seria um daqueles músicos muito importantes que já trabalhou com muitos dos grandes artistas brasileiros, porém pouco conhecido do grande público. Como um daqueles filmes aclamados pela crítica, mas que foram fracasso de bilheteria e depois se tornam um clássico cult de um grupo específico com status social suficiente para consagrar aquilo que gosta. Se olharmos bem, algumas de suas músicas mais famosas se tornaram muito mais conhecidas pelas versões de outros artistas como “O Vampiro” por Caetano, “Maracatu Atômico” por Gil e Nação Zumbi, “Lágrimas Negras” por Gal Gosta, “Samba dos Animais” por Lulu Santos ou várias músicas do álbum “...Maravilhosa” de Wanderléa. Geralmente essas versões são bem diferentes da versão original, perdendo um pouco do tom de declamação que Mautner dá. Muitas vezes ele não canta, ele declama. E declama de um jeito bem típico e autoral que dificilmente consegue ser reproduzido por outro artista, mesmo que esse tenha “alma de poeta”. Além disso, a forma com que ele expõe suas ideias nas músicas tem uma nítida característica textual que remete a descrições pertencentes as obras literárias.





O que deixa as coisas mais intrigantes é o fato dele ser definido ou resumido como músico sendo que, a meu ver, ele é muito mais um poeta filosófico ou um dramaturgo crítico. Muitas de suas músicas não são exatamente cantadas em sua voz, mas recitadas num tom bem comum aos poetas ao recitarem de forma interpretativa seus trabalhos. Demonstra cuidado ao enriquecer suas falas ou letras com detalhes vívidos de maneira que, em alguns momentos, parece que se trata mais de um livro numa descrição lúdica e realista. Afinal, Mautner começou a se dedicar de forma séria primeiro a escrita com seu livro “Deus da Chuva e da Morte” aos quinze anos. Chegando a ser premiado algumas vezes por seu trabalho literário com o Prêmio Jabuti, ele lança um total de onze livros entre 1962 e 2016. Uma literatura filosófica, poética, crítica e política. Sua obra literária não era só dramatúrgica, mas uma discussão sociocultural na arte e cotidiano da vida brasileira. Em 2002 seu trabalho literário recebeu uma montagem para teatro pelo diretor baiano Fábio Viana e estreou aqui em Salvador. É claro que nada disso contradiz o fato dele ser um grande músico e merecedor de reconhecimento, mas torna mais complexa a definição ou tentativa sobre Jorge Mautner.

Não tão distante da música e menos ainda da literatura, em 1968 escreve o argumento e roteiro para o filme “Jardim de Guerra” e em 1970 fez roteiro, argumento, direção e atuação em “O Demiurgo”. Ambos os filmes foram censurados pela ditatura militar. “O Demiurgo” não teve muito argumento ou roteiro e nem o próprio Mautner saber explicar direito sem se perder em elocubrações poéticas e filosóficas sobre a crítica da arte, mas tinha Gil, Caetano, José Roberto Aguilar e outros artistas brasileiros que se encontravam no exterior devido a situação política do país. Nesse período ele estava morando em Londres e foi assim que o garoto desconhecido pela Tropicália se aproximou de Caetano e Gil. Em 1989 é coprotagonista na comédia “A Festa”, filme de comédia com uma certa influência de teatro do absurdo. E pode ser coincidência ou influência, mas sua filha Amora, nascida em 1975, é diretora de televisão.





Logo após o golpe militar, em 1964, ele já havia sido preso pelo seu posicionamento político e forma de se expressar indecente -mesmo motivo de ter sido expulso do colégio anos antes- e liberado. Ele estreita seu posicionamento político ainda em 1962 através do físico matemático, e também judeu, Mário Schenberg e do multiartista José Roberto Aguilar. Para algumas pessoas, Mautner era muito, além de politizado, político e até revolucionário. Para outras pessoas, Mautner era muito mais questionador e pacificador social do que um ser político. Mesmo assim, a situação se aperta aqui no Brasil e parte para os Estados Unidos em 1966 onde trabalhou na tradução de livros brasileiros para UNESCO e como secretário do poeta Robert Lowell. Também se torna amigo do novelista, poeta, professor, sociólogo, ativista e judeu Paul Goodman que exerceu bastante influência política na sua vida. Alguns amigos enxergam um viés mais conciliador e esquizoide no sentido de uma variedade de influências políticas e filosóficas distintas. Em 1970 ele volta ao Brasil e começa a trabalhar no jornal “O Pasquim” e conhece o seu maior parceiro musical Nelson Jacobina. Os dois estabeleceram uma relação de “retroalimentação” musical entre eles ao apresentar e estudar ritmos musicais e instrumentos. Nelson Jacobina ficava impressionado pelo domínio, por mais simplista que fosse, de Mautner sobre os ritmos e instrumentos e a forma que ele misturava aquilo e devolvia algo novo e único, mas ao mesmo tempo comum e conhecido.





Mautner cresce com diversas influências artísticas, filosóficas e culturais que moldaram estranhamente o seu ser. O pai era uma referência judia de humor e filosofia; sua mãe, a quem era muito apegado, uma referência melancólica de origem católica iugoslava; seu padrasto era um talentoso músico que o ensinou a tocar violino e oscilava entre carinho e seu lado cruel; a figura de seu avô, o pai do seu padrasto, como dicotômico nazista velho e doce; a figura da avó, mãe de seu padrasto, como uma mulher malvada que não tinha motivos para tratar mal, enquanto seu marido nazista o tratava muito bem; e Lúcia, sua babá que ajuda a compor a figura materna, que o cuidava com extremo carinho durante boa parte do dia e o apresentou ao lado negro e pobre da cultura brasileira. Essa soma de fatores iniciais ajudou a compor o caráter “genuinamente brasileiro” que muitos atribuem a sua obra. Para mim -que já não sou muito fã desse termo- Mautner não era genuinamente brasileiro, mas sim genuinamente ele mesmo. No sentido de que ele tinha um domínio enorme de todas essas referências culturais, porém a forma com que ele produzia sua arte é única.





Como ele mesmo já disse, todo o passado envolvendo seus pais na Europa, a fuga para o Brasil e sua herança cultural judaica influenciou total e absolutamente em suas obras. Ou, em palavras dele mesmo “tudo que escrevi, falei, compus e senti, gira e girará entorno disso”. Ele tinha seu pai como um grande mestre sobre a cultura, religião e filosofia judaica que o instruía desde bem pequeno. E seu pai também fomentava seu lado político em se preocupar e combater o nazismo os males que poderiam acontecer relacionados a isso. Também atribui aos seus pais o presente de ter nascido no Brasil, o que possibilitou uma amplitude cultural. No documentário de 2012 dirigido por Pedro Bial “Jorge Mautner – O Filho do Holocausto” mostra de forma brilhante e intimista a vida e obra desse magnifico cantor, compositor, escritor, pintor, ator e etc. Mostra detalhadamente todos os elementos que foram sendo incorporados nessa relação simbiótica entre autor e obra.




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