[Bemidbar (Números) 8:1 - 12:16]
Rabino Abraham Heschel entregando o prêmio Judaísmo e Paz Mundial ao Dr. Martin Luther King Jr. em 7 de dezembro de 1965
Fonte: Official U.S. photograph, Public domain, via Wikimedia Commons
Há muitas lições na porção da Torá que lemos nesta semana. Podíamos destacar o acendimento e o posicionamento da Menorá; ou a consagração dos levitas, com sua idade de serviço entre os 20 e os 50 anos e que eles servem no lugar dos primogênitos de Israel, consagrados ao Altíssimo na ocasião da morte dos primogênitos egípcios; ou ainda como o povo se queixou do maná, querendo carne, exaltando sua vida no Egito, uma vida de escravidão; ou ainda o estabelecimento do que viria a ser o Sanhedrin, o grupo dos setenta que liderariam o povo, tendo recebido inspiração divina para isso. No entanto, há um acontecimento no mínimo curioso.
Trata-se do momento em que Aarão e Miriam criticam Moshé "por ter tomado (como esposa) uma mulher cushita". O resultado é que o Borê Olam (O Criador do Universo) não fica nem um pouco satisfeito com a atitude dos dois. Miriam é afligida pela "lepra" (tzora’át) e Moshé precisa interceder por ela. O povo resolve não se mover do lugar até que ela esteja curada, o que só acontecerá após sete dias.
Mas, quem era essa mulher de Moshé? Era a própria Zípora, ou era outra pessoa? Os rabinos de uma maneira geral defendem que era a própria Zípora. Não apenas isso, que era uma mulher belíssima fisicamente e de comportamento impecável (Rashi). Além disso, sabemos que a origem geográfica de Zípora era Midian, não Cush. Nesse caso, o termo cushit lhe poderia ter sido aplicado como um adjetivo? O que importa, no entanto, é que a irmã mais velha de Moshé desaprova algo em sua esposa, e o texto dá a ela o adjetivo cushit. Os cushitas eram africanos e habitavam a região da atual Etiópia. No hebraico moderno cushi veio a significar negro (ou preto) para se referir a pessoas originárias da Etiópia e das regiões ao sul do Saara. Nesse contexto, parece irônico que o embranquecimento causado pela lepra (tzoraát) atinja Miriam como consequência de sua crítica a Moshe por ter se casado com uma mulher negra (cushit). Mas, será que foi isso? Será que foi esse o erro de Miriam, e também de Aarão, diga-se de passagem?
Vale salientar que o texto parece indicar que o erro de Miriam e de Aarão foi terem criticado Moshé. Fizeram lashon hará contra o líder do povo. E não era qualquer líder. O Borê Olam defende Moshé e diz que ele não é como outros profetas que tinham sonhos e visões, mas que com Moshé Ele falava abertamente.. Isso dava a Moshé o direito de fazer o que quisesse? Não! Por isso, sabemos que por não ter sido admoestado pelo Eterno por ter tomado a mulher cushita ele não havia cometido erro algum. Certamente, ela havia adotado o estilo de vida judaico de acordo com a halachá, por assim dizer, da época.
Ainda assim, não nos parece claro que Miriam criticou Moshé pela cor da pele de sua esposa. No mundo antigo, não há muitos registros de discriminação pela cor da pele. Havia questões de guerras, escravidão, que não estava ligada apenas aos africanos, vide a etimologia da palavra eslavo. Muitos gregos acabaram se tornando escravos dos romanos, e assim por diante (1).
No Egito antigo, por exemplo, havia registros de várias etnias convivendo em seu território(2). Os Israelitas estavam acostumados, portanto, a ver e conviver com pessoas com diferentes tons de pele. Além disso, a Torá não se refere à cor dos israelitas ou de outros. Eram os valores que identificavam os descendentes de Avraham, Yitzchak e Ya'akov e os diferenciavam dos outros povos. A crítica dos irmãos de Moshé pode ter sido porque sua esposa não era originalmente israelita, o que deveria ser um padrão esperado do líder do povo, e que já vimos não parece ter incomodado o Eterno e nem, obviamente, Moshé. O que está claro, não obstante, é que a lashon hará não era, e não é, uma coisa qualquer. É um assunto que parece batido, mas nunca superado. Um erro no qual muitas vezes caímos. Os sábios rapidamente associaram a lepra ao ato de falar mal. É simbolicamente, mas com efeito, uma doença da alma, sermos capazes de ver os defeitos dos outros e não suas virtudes; termos mais prazer em divulgar o deslize do que o sucesso.
Outra possibilidade para que Miriam não tenha necessariamente sido racista é que há registros, inclusive no Talmud, de que os israelitas não eram o que definimos hoje em dia como "brancos". Vejamos o que nos diz a Mishná. No Tratado Negaim 2:1, que trata de doenças de pele - como a própria tzora’át, encontramos o seguinte:
“A mancha brilhante em um germânico aparece como branco opaco, e o ponto branco opaco em um cushita (etíope) aparece como branco brilhante. Rav Ismael diz que os filhos de Israel são como o buxo, nem preto nem branco, mas de um tom intermediário.”
Aqui há uma instrução de como identificar a doença de acordo com diferentes tonalidades de pele. O israelita é descrito como tendo uma tonalidade intermediária. Logo, pode ser que Miriam não tenha visto a si mesma como muito diferente fisicamente da esposa de Moshé, uma vez que não era “branca”.
São conjecturas e provocações, exercícios de pensamento diante do mundo racista em que vivemos. Aliás, os cientistas modernos descrevem as definições raciais atuais como obsoletas, portanto uma construção social (3). O que não significa que não deva ser combatido e eliminado de nossa sociedade.
O que importa é que a Torá não trata de tom ou cor de pele nos seres humanos. Temos o exemplo de Abraham Joshua Hershel, o rabino que convenceu o Vaticano a renunciar suas condenações contra os judeus e que marchou de Selma no Alabama à Montgomery, capital do estado, com Martin Luther King na luta contra a segregação racial nos Estados Unidos nos anos 60. A Torá se importa, então, com o nosso comportamento, com a diferença que podemos fazer. Essa sim deve continuar a ser nossa marca registrada, a marca histórica do povo de Israel, para o melhoramento do mundo.
Shabat shalom
Referências
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